terça-feira, 25 de novembro de 2014

SUSANA WALD | Divagações sobre o maravilhoso






A maior contribuição do surrealismo para nossa compreensão da realidade talvez seja sua concepção do maravilhoso. Qualquer um de nós, humanos, pode sentir um "frisson," uma certa vibração que percebemos agradável quando deparamos com a glória de um por do sol, com o sorriso de um bebê recém-nascido, um botão de flor, ou o sabor de uma fruta madura.
Quando, quase cem anos atrás, os surrealistas começaram a trabalhar em seus poemas ou imagens, verificaram que essas mesmas vibrações agradáveis podiam ser reconhecidas em eventos e acontecimentos anteriormente classificados como bizarros feios, ou até mesmo desprezíveis.
O maravilhoso de que estamos falando, o maravilhoso dos surrealistas, refere-se a eventos momentos, sensações que experimentamos o tempo todo, mas muitos deixam passar, deixam de perceber, e até mesmo evitam. Esse tipo de evento é chamado, às vezes, de coincidência, de mistério, de estranho.
C. G. Jung, que estudou o fenômeno da psiquê, fala dessas coincidências e as considera manifestações de nosso inconsciente (o que de fato frequentemente são), ou eventos inexplicáveis que nos fazem sentir que algo de estranho ocorre. Nos fala de uma tarde, em sua casa, quando, num armário fechado e sem que ninguém soubesse por que, uma faca partiu-se em pedaços, produzindo um considerável ruído. É esse o tipo de acontecimento que podemos chamar de maravilhoso.
Ou talvez percebamos algo acontecendo a uma grande distância, como uma morte ou um acidente, e pouco depois recebamos notícia de que o acontecimento de fato se deu. Também isso é maravilhoso. Ou o telefone pode tocar e sabermos que a chamada é de alguém com quem não estivemos ou falamos há muito, antes mesmo de nos aproximarmos do aparelho. Maravilhoso.
É maravilhoso brincar com imagens, desenhando algo, dobrando o papel e permitindo que o jogador seguinte veja algum pequeno detalhe “escapando” da dobra, e depois uma terceira ou quarta pessoa acrescentar ao desenho. Nenhum dos jogadores sabe o que os demais fez e, ainda assim, quando o papel é desdobrado, sempre parece haver uma surpresa, a maravilha de ver alguma estranha criatura nascida do exercício, ou um sentido inesperado que se torna perceptível com esse tipo de colaboração. Essa maravilha que os surrealistas chamam de cadáver delicioso. O nome vem da primeira que o jogo foi realizado com palavras, quando a primeira frase surgida foi algo como “O cadáver esquisito gosta de beber o vinho novo." Uma frase impressionante que aturdiu a todos os presentes.
Em minha opinião, a realidade é tão complexa, tem tantos elementos acontecendo simultaneamente, ou em sequências que estão além de nossa compreensão, que nós, armados da proteção que a mente confere ao classificar as coisas para nos impedir de “perder a cabeça”, percebemos apenas diminutos segmentos da realidade a qualquer dado instante. E se nos permitimos “perder a cabeça” e prestamos atenção em nossas vidas rotineiras, somos efetivamente bombardeados pelo entrecruzar dos elementos da realidade, percebendo que o maravilhoso está sempre presente.
Escuto falar de alguém e a pessoa aparece à minha porta, sem planejamento prévio meu ou dela. Procuro por algo de que preciso e está logo ali, junto à minha mão, onde eu não vira antes. Estou convicta de que, em tais momentos, somente irei encontrar aquilo de que realmente preciso, quando realmente preciso, e que procurar por essa coisa em outros momentos é um desperdício inútil de energia. O surgimento do visitante ou o encontrar a peça que nos falta enquanto trabalhamos são acontecimentos felizes maravilhosamente satisfatórios.
O mundo dos sonhos representa um papel importante na compreensão do maravilhoso. Os sonhos não são raciocínio, não seguem as regras do bom comportamento, ou rígidos valores sociais. Apresentam-nos imagens vívidas que percebemos como realidade enquanto sonhamos e que não compreendemos ao despertar. Podem ser premonitórias, anunciando algo que irá acontecer dali a meses, podem ser ameaçadoras ou apaziguadoras, podem ser apenas engraçadas. Os surrealistas levam seu mundo de sonhos, esse impulso interno do inconsciente, muito a sério e o consideram parte daquilo que é a nossa realidade em geral. E, claro, não estão sós nessa avaliação.


Escritores ou artistas plásticos que reclamam de períodos em que seu trabalho fica estagnado, quando a página ou o monitor em branco tornam-se ameaça, quando a tela preparada vira uma imensidão impenetrável, simplesmente não estão abertos para o maravilhoso. Nosso self interno, nosso inconsciente, nunca fica estagnado, nunca para de trabalhar. Se apenas nos permitíssemos escrever algo sem sentido, ou fazer um traço não planejado sobre a tela, pelo simples fato de termos feito isso o trabalho começará a fluir. Produza uma linha, uma linha qualquer de texto ou de tinta; se não ficar satisfeito com ela, modifique-a e entre no fluxo. O que acontece, contudo, é que temos que permitir que o maravilhoso nos diga coisas, nos dê resultados que podem ser fora do planejado, loucos, desconfortáveis, ou até feios. Mas estarão ali, gritarão conosco, e nos sentiremos bem se pudermos admitir que o momento específico em que estamos trabalhando tem aquela aparência e é maravilhoso.
Recentemente li em algum lugar que os surrealistas não usam a razão em suas vidas. Nada mais distante da verdade. O que está em questão nesse campo do maravilhoso e que enxergar a vida à luz da razão, excluindo tudo o mais como loucura ou doença, é levar uma vida paupérrima. Os surrealistas enriquecem suas vidas ao abraçar o maravilhoso com suas mentes conscientes, racionais, ao considerar, ao até mesmo explorar, o maravilhoso. Nossas mentes racionais chegarão, assim, à conclusão de que nossas vidas são mais ricas, mais completas e cheias de momentos de alegria quando surge o maravilhoso.
Assim, no pensar surrealista, o que não é racional podem ser maravilhoso. O que não está aberto à análise habitual pode ser maravilhoso. Simplesmente porque sim. E porque ao permitir que a vastidão da realidade surja de maneiras que não as ordenadas por regras e regulamentos, se pode construir obras de arte que crescem e se espalham e nos preenchem de alegria à medida que acontecem. Isso quer dizer, é claro, que não se pode planejar o maravilhoso. Ele acontece. Não é preciso ser necessariamente um artista para viver dessa maneira; estar aberto para o maravilhoso é um modo de viver que todos podemos adotar.


SUSANA WALD (Hungría, 1937). Diseñadora gráfica, traductora literaria y escritora. Ha realizado trabajo como docente en Chile, Canadá y México, enseñando principalmente cerámica, dibujo, pintura y teoría de la creatividad en las artes. Ha realizado exposiciones individuales en Chile, Canadá, EUA, Francia, Alemania, Bélgica, Islandia, Venezuela y México. En octubre de 2001, fue artista invitada de Agulha Revista de Cultura # 17. En el Proyecto Editorial Banda Hispánica se puede leer su libro Intuiciones y obsesiones (2010): www.jornaldepoesia.jor.br/BHCAlivro07.pdfFoto de SW por Daniela Sol. Contacto: susanawald@yahoo.com. Traducción al portugués por Allan Vidigal. Página ilustrada con obras de Leonardo da Vinci, artista invitado en esta edición de ARC.

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