quarta-feira, 1 de novembro de 2017

OLÍVIO TAVARES DE ARAÚJO | Jair Glass, um maneirista hoje


Li recentemente [1] em um jornal paulistano – um pouco pasmado com a peremptoriedade de quem o escreveu – que a figuração está definitivamente banida do universo da arte contemporânea. É tão inexata quanto aquela outra morte, tantas vezes anunciada, a da própria arte – que no entanto jamais se consumou. Revela antes de mais nada a desinformação do autor sobre o comportamento cíclico das linguagens artísticas, seu ir e vir entre pólos opostos que se alternam. Dizer que a figuração está esgotada é desconhecer que ela, assim como sua antítese, a abstração, repontarão sempre no tempo, aqui e acolá, igualmente legítimas e sem qualquer hierarquia, em culturas diferentes, em lugares diferentes, mas sempre perenes.
Além de figurativo, o desenhista Jair Glass está ligado à tradição da arte fantástica, na qual – como escreveu Goya numa de suas gravuras da série dos "Caprichos" –, "o sono da razão engendra monstros". Isso o põe definitivamente fora de moda, pelo menos no Brasil dos anos 1990, onde as forças formadoras da opinião estão a serviço de um tipo de arte diametralmente oposto. O que se determina hoje como contemporaneidade – se não como modelo hegemônico – é uma espécie de neo-minimalismo ligado à geometria e construído só com a cabeça. Mas – de novo –, nenhuma arte, só por sua opção estilística, pode ser decretada como a melhor, a desejável, a que deve ser estimulada. Não existem regras a priori para que um modelo de linguagem seja bom e o outro ruim. Pode-se ser bom sendo Mondrian ou Jackson Pollock, Mira Schendel ou Farnese de Andrade.
Não é por acaso que cito o nome de Farnese, pioneiro da box form entre nós, que mereceria figurar internacionalmente ao lado de um Joseph Cornell – de quem aliás ganha, em matéria de profundidade dos universos tratados e densidade da poética. Farnese também não está na moda, [2] justamente por ser o mais perfeito representante de criador visceral no Brasil de hoje.
A despeito de outros raros exemplos – talvez uma curta fase de Flávio de Carvalho, algumas aquarelas de Cícero Dias, quadros pontuais do fim da vida de Ismael Nery, mais tarde a escultura de Maria Martins –, a vertente surrealista, como se sabe, não prosperou muito por aqui. Teríamos que investigar com mais calma por que motivos vingaram com muito mais brilho os movimentos de natureza construtivista, começando pela influência do cubismo sobre os modernistas, e culminando com o concretismo e o neoconcretismo nos anos 50. Faltando-nos, pois, uma tradição surrealista, artistas como Farnese – que não é um surrealista, mas tem algumas afinidades com a corrente – acabam sendo deixados à margem.





 Tampouco Jair Glass é surrealista, nem no sentido estrito (o uso de métodos para liberar a criação inconsciente, o "automatismo psíquico puro"), nem no sentido largo com que a palavra é empregada pelo público, pensando, por exemplo, em Salvador Dali. Pertence à estirpe que nasce, na cultura ocidental cristã, com os anônimos autores de certa estatuária gótica fundamentalmente expressiva e chega até o neoexpressionismo; aquela estirpe que trata com "a noite escura da alma" (para usar a bela expressão de San Juan de la Cruz), da qual é originária e à qual dá vazão. A simplicidade pessoal de Glass e a (pelo menos aparente) espontaneidade de sua produção não sugerem que ele esconda abismos dentro de si próprio – embora eles tenham que, inevitavelmente, existir. Surpreende o contraste entre sua doçura e timidez, a humildade intelectual e espiritual (o que não quer dizer qualquer tipo de ignorância), e sua obra povoada de estranhezas. Quão insondáveis são os desvãos da psiquê humana, provando que continuam verdadeiras ainda hoje – pelos menos nesses casos exemplares – as teorias freudianas (ou delas derivadas) sobre o mecanismo da catarse.
Pois no fundo do Jair com que convivemos tão amenamente reside uma fogueira escondida, alguma força em ebulição que ele só consegue controlar botando-a para fora metamorfoseada por sua fantasia. A criação se torna instrumento particular de equilíbrio para sustentá-lo no universo; é exatamente o mesmo que acontece com Farnese, Iberê Camargo, Flávio-Shiró. Isso não basta, porém, para que se faça boa arte. É preciso acrescentar que Glass possui uma instigante inventividade e grande articulação formal. Depois de ter apenas desenhado, por muito tempo, nos suportes e formatos habituais dessa técnica, enveredou nos últimos anos por recortes, colagens, costuras, aplicação de materiais diversos, quase assemblages: talvez a assemblage se mostre particularmente apta para estimular e expressar os mecanismos mentais desses ajuntadores obsessivos de sonhos. Além disso, passou a manipular com certo humor negro imagens preexistentes, especialmente dos mestres do Renascimento italiano. Faz paráfrases de quadros ou inclui fisicamente pedacinhos, citações. Não se trata de um projeto erudito e sim de uma espécie de divertissement de artista pobre, que se formou lendo "Gênios da Pintura". De qualquer forma, resulta num trabalho de segunda geração.
A seu modo, Jair Glass é um maneirista neste fim de século – o que não quer dizer, evidentemente, maneiroso nem amaneirado, mas sim ligado àquela forma de ver e se expressar que se manifestou entre o Renascimento e o Barroco, e foi assim denominada. Tem dos maneiristas uma certa volúpia, o encantamento por um discurso meio labiríntico, o capriccio. Para o homem do maneirismo, "a ordem política e moral do mundo encontra-se conturbada. Já não se pode dizer que o universo forme um cosmos harmonioso. O mundo é antes uma terribilità (...). O mundo está repleto de desordens e de angústias, razão pela qual ele não mais se deixa retratar pelas regras do Classicismo". [3] Haverá alguma dúvida de que é o mesmo pano de fundo sobre o qual se move nosso desenhista?
Ainda assim o páthos de Glass não é doentio, é mordaz; sua fantasia é antes lúdica que mórbida. Ultimamente, o tempo se tornou também matéria do desenho, as coisas desaparecendo, se deteriorando, caindo, o papel esgravatado, rompido, como se estivesse entrando em decomposição. Mas não se trata de nenhuma rendição. A falsa fragilidade das obras esconde a firmeza da vontade, tudo posto a serviço de uma consciência crítica, dolorida e aguda.

NOTAS
1. Observar que o texto é de 1990.
2. De novo a mesma observação. No ano em que este livro se publica (2002), Farnese, morto há algum tempo, talvez esteja é entrando na moda.
3. Gustav R. Hocke, Maneirismo: o Mundo como Labirinto, Editora Perspectiva, São Paulo, 1986, pág. 21.


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OLÍVIO TAVARES DE ARAÚJO (Brasil). Crítico de artes e curador. Página ilustrada com obras de Jair Glass (Brasil, 1948), artista convidado desta edição de ARC.

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Agulha Revista de Cultura
Número 104 | Novembro de 2017
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