quinta-feira, 3 de maio de 2018

DEZ POEMAS DE RENATO SUTTANA



PEQUENA ELEGIA

Disse Teresa de Ávila
(talvez não o tenha dito;
sonhei pelo menos que o teria dito) —
que num barril cheio de água
ou numa inundação
uma panela vazia flutuará,
porque é pequena e vazia.
(Como a arca flutuou naquele tempo,
sobre oceanos de desamparo.)

Quero comigo esse pensamento.

Às vezes, em minhas horas de aflição,
em que tento colocar em minha vida
um lastro excessivo de coisas,
em que tento preencher de algum modo o que sou.

Tenho-o comigo em minhas horas de desânimo:
o que for mais leve flutuará,
o que estiver vazio deslizará na superfície.


FRAGMENTOS PARA UMA ELEGIA

O homem que faz os milagres
fugiu no escuro. (Não veio.)
Aquela festa da aurora —
aquele vasto girar.
Nenhum tesouro se achou
sob a maré dos escombros:
nenhuma porta, passagem,
revelação ou enigma.
O touro da simpatia,
o progredir da semente.
Nenhuma voz se escutou
quando o silêncio cresceu:
e a luz se apagou, e o fogo
se extinguiu na escuridão.
O mecanismo falhou
(o porto se distanciou) —
e nada ficou melhor,
e nada ficou mais claro.
Não existia o caminho —
a ponte havia ruído.
(O teto desmoronara
sobre chapéus e cabeças.)
Que digo? Não veio o vinho
porque a videira secou
na geometria do gelo. —
E o resto foi só o deserto
com sua pedra e seu sol:
seu estilhaço de sol
no centro mínimo do olho.
Falhou a engrenagem — seu
nulo ranger na memória:
o nome que se lhe desse
(a ênfase que se lhe desse),
toda a importância que tinha.


O LOUCO

O louco que me sonho talvez seja,
na sucessão de imagens em que o sono
se desenrola, em seu turvo abandono,
aquele que me espreita e me deseja

e não tem corpo ou voz entre o que eu veja
no dia claro, todo maio e outono,
todo a luz dominante e o seu entono,
mas que, no escuro, à noite o olvido enseja.

O louco vem à noite e me repõe,
fora da pretensão de eu ser somente
o fantasma desperto que o supõe:

me inventa inusitado de repente,
de costas para o engano em que pensei
estar sujeito ao dia e à sua lei.


PUXADO PARA FORA

Pegam meu fantasma
e o denunciam
ao antropólogo

Não deixam pedra sobre pedra.
Estilhaçam meus vidros.
Pegam minhas mãos
e vão mostrá-las
ao quiromante.

Quando estou em repouso
me arrancam de meus lençóis,
me arrastam
para fora de minha toca
(arruínam minha cegueira e meu caos)
e vão distribuir-me
entre os leopardos.

Onde existo
não admitem que eu fique:
não admitem que eu pare. —
Aos pedaços,
retiram-me de minha tumba
e com meu ouro esquartejado
vão alimentar
os seus pardais eruditos.

Nem dia, nem noite —
nada, absolutamente: nenhuma paz.
Pegam minha silhueta e a subvertem.
E, com minha fisionomia destroçada,
vão exibir-me
na Babilônia.


PESADAMENTE

Dormi, paquidermicamente, na noite injusta,
mergulhado num sono invisível
que eram apenas sonhos invisíveis,
dos quais mal me recordava ao despertar.

Dormi, como se quisesse existir ao contrário,
como se quisesse desaparecer
sob uma massa de esquecimento branco
que não continha a não ser o esquecimento ―
que não continha a não ser a ausência
de mim mesmo em mim mesmo que o sono proporcionou ao cair
(porque o sono sempre proporciona
esquecimento e sempre proporciona
uma ausência de nós mesmos em nós mesmos quando cai).

Ao despertar não me lembrava de nada,
não me lembrava de ter dormido
(porque dormir não é uma coisa de que nos lembremos ao [despertar,
dormir apenas nos prepara para a luz,
nos renova para as horas em que nos esquecemos de ter dormido
e em que vivemos como se não houvesse dormir,
lançando-nos para diante
como se nada disso importasse)
paquidermicamente, pesadamente,
como só uma pedra pode dormir
no fundo de um poço.

Pesadamente, escuramente,
como quem despe uma roupa,
como quem deita fora um entulho ―
sendo eu mesmo esse entulho
que deitei fora para dormir.


COMO SE

Asa pássaro.
Asa que pudesse
prescindir do pássaro
e completar sozinha
seu voo ao redor
do segredo.

Voo
que pudesse prescindir da asa
e lançar-se
repleto de si mesmo
para um céu de safira e ouro
onde a potência e a liberdade
fossem irmãs do mistério.

Céu que de si mesmo
se bastasse
e prescindisse do voo
para manifestar ao olho
o seu esplendor
(a sua luz de todos os dias) —
a sua chama.

Sonho
que devolvesse ao pássaro
a sua potência de voo,
não convertida numa asa,
mas feita de nuvem e altura,
a pairar por cima
de todos os ares.

Instantes que pudessem
prescindir da coisa, que pudessem
precipitar-se sozinhos
para o futuro:
cheios das cores do futuro
e dos caminhos que o futuro
prepara na intimidade
do caos.

E não o vácuo
ou o rochedo atado ao vácuo,
ou o pensamento do vácuo
que almeja crescer no desejo,
mas esbarra na pedra
e vai dormir vazio na solidão.

(Não a quimera de uma boca
avistada ao longe,
na qual se faz uma aposta
e sobre a qual
se deposita uma esperança
que é como um pequeno fio
unindo as duas pontas do caos.)

Não o estares aí,
sozinho, a olhar a pedra,
a olhar a praia à distância,
com a tua boca
que tenta chegar ao topo,

que tenta alcançar,
mas tropeça
e cai
como um Ícaro qualquer
em direção ao silêncio.


DO LADO OPOSTO

Do lado oposto é só sombra.
Mas deste lado, visível,
abençoado pelo brilho
de uma primavera franca,
é suave, exato, possível.

Do lado oposto mergulha
no mistério dissentâneo
daquilo que é sem pergunta
e se alonga treva adentro,
como um rio subterrâneo;

mas deste lado, tangível,
sob a luz que dá contorno
e recorta cada forma
contra a diurna duração,
é simples, nítido, morno.

Do lado oposto é distância
que não se contém nas horas
e se duplica entre insônias
e apreensões que não se aplacam
sob o leite das demoras;

mas deste lado, onde vige
a azul norma da estação,
é uma pele, um dorso calmo
que se pode dar ao olho,
se pode afagar com a mão.


MENDIGO

Mendigo. Esqueceu o mundo.
Foi pedir asa ao tufão.
Foi pedir ao vento fundo
uma esmola que era e não.

Foi buscar à fantasia
do seu torto desejar
uma forma que a luz fria
não podia revelar.

Foi, batido pelo vento
e pela chuva, no inverno ―
tocado só de momento
e de um baço fogo interno

(como quem vai, pressuroso,
ao encontro de um sonhado
rei benigno e dadivoso,
na esperança de um mandado) ―

pedir ao raio e à procela,
ao granizo e à ventania,
uma prenda rara e bela
que o futuro lhe devia

(e que nunca lhe pagou,
embora, entre as mil arestas
contra as quais se machucou,
como entre arcos e florestas,

certa consciência insegura
lhe tenha dado, afinal,
de que a vida assim se apura
e disso tira um sinal). ―

Mendigo. Esqueceu o jogo
em que o mundo farandola,
e foi levar-lhe o seu rogo.
Foi lhe pedir uma esmola.


PRESTES A CAIR

Não há prêmio que valha a pena,
nem justiça que satisfaça
ou me guarde contra os punhais
do vento, que me descompassa —
prestes a cair de mim mesmo.

Agarro-me ao ar e não penso:
já sem vela, mastro e timão,
num esforço de manobrar
que dura só o tempo da ação
(prestes a cair de si mesmo).

Mas que sei? — Aprumo-me. E venho
cruzando, sobre um bambo fio,
o mar turvado da hora morna,
que desdenha o meu desvario
(prestes a cair de si mesmo).

Firmo-me nisto, sem esteio,
e tento amarrar uma ponta
do pensamento — ou fímbria, ou trapo
de resposta, com que a alma conta,
antes de cair de si mesma.

Não há norte que valha a pena
alcançar, para além do oceano:
e o céu não atrasa os punhais
da tempestade, onde me dano —
prestes a cair de mim mesmo.

A hora é morna — oceano peco.
E nela vou, trôpego e lento:
preso a um nada de compromisso
que mal cabe num pensamento
(prestes a cair de si mesmo).


CANÇÃO DOS QUARENTA E SETE ANOS

Isto que em nós se alastra
e não sabemos bem
se é só uma água de tédio
ou um incêndio, e vem
crescendo contra nós
até o transbordamento,
até a final mudez,
na curva do momento;

isto que nos desnuda
e nos expõe ao sol
e, quando chega a sombra,
não é luz nem farol,
e se abre em nós, e é chaga
sobre a nossa impaciência,
ladrando sono adentro,
por incapaz de ausência;

isto que de um extremo
a outro extremo nos toca,
e é uma semente incrédula
no vazio da boca,
e é um naco de coral
onde nada nos ama
e um carinho gorado
no escuro, onde se inflama;

e que semelha o gume
de uma lâmina gasta
rompendo em nosso sangue
como um erro que basta —
e resvala à deriva
sem ver o litoral
e, quando atinge o porto,
é sem cor ou final;

isto que vem de agosto,
e se acumula em nós,
formando grandes pilhas
sobre os nadas da voz;
pesando como fardos
sobre o nervo da espera,
sem sossego ou sentido
no oco da primavera;

que é tudo isto senão
onda a morrer na areia,
ou sílaba do acaso
num canto de sereia;
ou caminhar às cegas
por algum litoral,
marchando lentamente
sobre dunas de sal?

Isto que vem de agosto
como uma água, uma enchente,
crescendo sobre a tarde
lenta e incorretamente,
e que, antes de atingida
a meta que propôs
o nosso pensamento
naufragado em após,

inundou com o seu peso
e a sua densidade
nosso fraco desejo
de asa e velocidade
(como se nele aos poucos
fosse depositando
um sedimento de erro
sobre as horas pesando),

e não abre uma porta
nem aponta o caminho
(que se vence aos tropeços,
indo às cegas, sozinho),
e não tem no seu fundo
de preguiça e fadiga,
de lentidão e trave,
um aviso de “siga”

(um aviso de “alcance”,
qualquer que seja o caso,
qualquer que seja a vaza
ou o matiz do acaso),
e é como um nome próprio,
e é ver o próprio rosto —
nos olhando, impossível,
num espelho de agosto:

mirando-nos, de vidro
(máscara de talvez),
no fundo desse espelho,
entre cãs e porquês
(e pronunciando, à noite,
uma inútil pergunta
à qual de poeira e cinza
um punhado se junta) —

que é tudo isto senão
os restos do tornado
ou destroços da chuva
que o olho enxerga, embargado
por esquisita névoa
de esquecimento e pressa
a que a espera aborrece
e ir somente interessa?

(Que sabemos?) Agora,
nesta curva que não
leva a parte nenhuma,
que não é direção,
que não é ter um mapa
sobre a palma, qualquer,
ou bússola de sonho
ou vazio entender

o curso das estrelas
sobre a abóboda azul
que veste a noite vasta,
desde o norte até o sul
(que sabemos?), agora
que a coragem fracassa
e a voz tarda e trepida
entre o vento e a fumaça —

isto é nada: é ter vindo
sem aviso ou convite,
para um falhado encontro
que só o sonho admite:
e ter chegado cedo
(sendo tarde o bastante)
para um vão compromisso
na pétala do instante;

e é chuvoso, e se alastra
sobre o dia, e nos vem,
como uma água de tédio,
que não sabemos bem;
como um incêndio, um fogo
ardendo em nós e contra
nossa boba constância
que a cada passo encontra

um obstáculo novo,
um muro novo, sobre
o qual, olhando bem,
um corvo se descobre,
uma voz repercute
de brisa e de ninguém
(a dizer-nos, tardia,
que nada nos convém,

que importa persistir
até a medula do osso,
até o centro da náusea,
com o seu duro caroço). —
Isto vem e desnuda
em nosso pensamento
uma evidência seca
de inútil ardimento —

de clara decepção
convertida em memória,
que é pluma em pleno vácuo,
onde em vão se balança;
e é sílaba do acaso,
ou canto de sereia,
ou deriva, e umidade,
e onda a morrer na areia.


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RENATO SUTTANA (Barbacena/MG, 1966). Poeta, ensaísta e tradutor. Autor de Conversa de Espantalhos (2012) Bichos imaginários (2013), Rapinário (2015), Diário de Buenos Aires (2016), Quando me abriram portas (2016), Altiplano (2017) e A máscara (2017). Página ilustrada com obras de Jasmine Thomas-Girvan (Jamaica, 1961), artista convidada desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 113 | Maio de 2018
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